Crónica de Alexandre Honrado – Fotos do matadouro
O trabalho do historiador esbarra em alguns muros altos. O primeiro é capaz de ser o da sua própria formação, daquilo que manteve herdado dos seus ascendentes – dos laços de parentesco aos mestres que mais o influenciaram – e da cultura que sedimentou como sua.
O olhar individual, por mais crítico e abrangente, por mais desejoso de abarcar o todo, o mundo em geral e as suas especificidades, fica prisioneiro dessa cultura que o identifica e condiciona.
Outro muro alto é esquecer que o seu trabalho é manter-se na interpretação de uma teia, como a aranha faz para sair de “casa”. Nessa teia as “moscas” são ideias, um manancial quase infinito delas, e vidas, cada uma delas com um percurso com memórias e esquecimento, iniciativas e acomodamentos. São elas, ideias e vidas, que operam tarefas do agir e fazem o que há para sentir e possuir, para sofrer e perder, para ter ou partilhar.
Outro muro – ou outro erro – é o de pensar que o seu gabinete, o seu espaço de investigação, o seu meio académico ou mesmo o seu país, continente ou formatação coletiva onde se sente inserido, são pontos sólidos de referência.
Um erro comum é o de ser ocidental (ou oriental) ou eurocêntrico ou asiático, defender esta etnia ou este lote de artimanhas políticas que podem destruir a sua isenção, a sua procura de rigor e sobretudo a sua credibilidade. É um erro que o leva a olhar do que está sob o queixo até à biqueira dos sapatos, sem ver portas, janelas, o que está para lá delas.
Outro erro é ficar à sombra e deixar a ribalta iluminada para os atrevidos, que fora dos factos se fazem apenas de opiniões delirantes, ignorantes puros mas ativos, como a mosca que molhando as patas de mel e as asas de cera acordou a pensar que era uma abelha.
Se passarmos os olhos pela Internet, há milhares desses produtores de opinião que dizem ininterruptamente coisas equivalentes ao lixo de plástico que poluem os oceanos do nosso mundo. A sua dificuldade de afirmação passa por vezes pelo terrível pensamento de levar aos outros o seu pensamento que, sendo dispensável, pode causar danos irreparáveis.
Alguns desses produtores de poluição cultural dizem que Auschwitz nunca foi o centro de horror que muitos sabem que foi, que a Inquisição era apenas uma exigência da época em que foi criada e mantida, que os ditadores se legitimam para dar ordem e progresso aos seus povos, que as guerras se justificam e são da cor dos vencedores, que os colonos sempre respeitaram os colonizados, que nunca existiram marcas nojentas e incapacitantes como o racismo, a xenofobia, a homofobia e outras incapacidades humanas que o ser humano cria e desenvolve quando está apavorado consigo próprio. Tudo isso está, no entanto, escrito e brandido como verdade nas “redes sociais”, e em sítios de maior responsabilidade.
Outro erro, finalmente, é permitir que ainda exista a ideia de que estamos em pleno choque de civilizações, quando a única civilização conhecida é a humana, sempre em agitação massiva, sempre a crer levar o individual ao global, esquecendo que, desde os nossos ancestrais recolectores (e caçadores) é dependente do Natural e da Natureza, sobre a qual cometeu crimes tão graves como aqueles que consumou – e repete até hoje – sobre os seus semelhantes.
Como alguém escreveu: não há fotos de matadouros em laboração na cadeia dos restaurantes que servem hamburgers. E esse é outro erro.
Alexandre Honrado
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